… (Série Artigos Técnicos)… GEOLOGIA DE ENGENHARIA: A GEOCIÊNCIA APLICADA QUE VÊ O HOMEM ENQUANTO AGENTE GEOLÓGICO

Felix qui potuit rerum cognoscere causas. Feliz o que pode conhecer as causas das coisas.   

(Elogio de Virgílio àqueles que pesquisam os fenômenos da Natureza)

Sobre a missão e a prática da Geologia de Engenharia

Mesmo constituindo-se em uma das geociências aplicadas de maior e crescente importância para o sucesso dos empreendimentos humanos no planeta, e para o sucesso da própria Humanidade como espécie, a Geologia de Engenharia ainda é pouco conhecida do grande público e até de setores técnicos próximos, especialmente no que se refere à sua conceituação, sua vinculação científica principal e seu raio de ação.

Entre os campos de aplicação da Geologia destacam-se a Geologia Econômica, que tem por missão a busca e a lavra de todos os recursos minerais de interesse do Homem (aí inclusos todos os tipos de minérios, o petróleo, o gás natural, a água subterrânea), e a Geologia de Engenharia, cuja missão maior é compatibilizar tecnicamente toda intervenção do Homem no planeta com as características geológicas naturais (o ambiente geológico) de cada região ou local afetado.

A IAEG (International Association for Engineering Geology and the Environment), refletindo o crescimento exponencial dos problemas ambientais em todo o mundo, atualizou sua conceituação epistemológica oficial para Geologia de Engenharia, a qual consta de seus estatutos e já dos estatutos da ABGE (Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental):

“Geologia de Engenharia é a ciência dedicada à investigação, estudo e solução dos problemas de engenharia e meio ambiente decorrentes da interação entre as obras e atividades do Homem e o meio físico geológico, assim como ao prognóstico e ao desenvolvimento de medidas preventivas ou reparadoras de riscos geológicos”.

De uma forma concisa, podemos entender a “Geologia de Engenharia como a Geociência Aplicada responsável pelo domínio tecnológico da interface entre a atividade humana e o meio físico geológico”.

A Geologia de Engenharia, por outro lado, integra, com a Mecânica dos Solos e com a Mecânica das Rochas, alimentando-se reciprocamente, o grande campo da Geotecnia, o qual reúne todo o ferramental científico e tecnológico para o mais correto equacionamento, dimensionamento e execução de obras de engenharia no que diz respeito às suas relações com os terrenos e materiais naturais com os quais interferem.

Em que pese o uso de informações geológicas para o benefício do Homem ser já muito antigo, desde mesmo o tempo das cavernas como abrigo e moradia, a Geologia de Engenharia, como uma geociência aplicada sistematizada e individualizada, é relativamente recente. No Brasil, sua introdução e desenvolvimento deram-se especialmente a partir do final da década de 50, como conseqüência do surto de construção de grandes obras de infra-estrutura no país. A partir de meados dos anos 70, a Geologia de Engenharia brasileira, já considerada destacadamente em todo o mundo por sua alta qualidade, amplia consideravelmente seu campo de ação objetivando o diagnóstico e a solução dos graves problemas de ordem regional e ambiental que atingem o país. Com isso assumindo suas fundamentais e insubstituíveis responsabilidades no suporte técnico-científico ao preceito conceitual do desenvolvimento sustentado, qual seja, o desenvolvimento provedor de qualidade de vida no planeta para esta e para as gerações futuras.

Para o atendimento de suas necessidades (energia, transporte, alimentação, moradia, segurança física, saúde, comunicação…), o Homem é inexoravelmente levado a ocupar e modificar espaços naturais das mais diversas formas (cidades, indústrias, usinas elétricas, estradas, portos, canais, agropecuária, extração de minérios e madeira, disposição de rejeitos ou resíduos industriais e urbanos…), fato que já o transformou no mais poderoso agente geológico hoje atuante na superfície do planeta.

Por outro lado, não há intervenção humana no meio físico geológico natural que não provoque algum tipo de desequilíbrio. O corte em uma encosta, o peso de uma barragem, o vazio provocado pela escavação de um túnel, a impermeabilização do solo causada pela cidade, o rebaixamento forçado do lençol d’água subterrâneo, o desmatamento de uma região; enfim, ao modificar as condições naturais pré-existentes o homem está interferindo em um estado de equilíbrio dinâmico natural. Como resposta à ação do desequilíbrio há uma mobilização de forças naturais orientadas, como reação, a buscar um novo estado de equilíbrio. Caso esse empenho de busca de um novo equilíbrio se dê isoladamente pela própria Natureza, as consequências para o homem costumam ser catastróficas: acidentes locais como deslizamentos, o rompimento de uma barragem, o colapso de uma ponte, a ruptura de um talude, avarias e acidentes em fundações, recalques de terrenos, colapso de obras subterrâneas, patologias estruturais, por exemplo, ou problemas regionais como o assoreamento de um rio, de um reservatório, de um porto, inundações, a contaminação de solos e de águas subterrâneas, conseqüências extremamente onerosas social e financeiramente, e muitas vezes trágicas no que diz respeito à perda de vidas humanas. Para que essas consequências negativas não aconteçam é necessário que o homem conheça e entenda perfeitamente as características e processos naturais do meio geológico em que está interferindo, de tal forma a melhor adequar seus projetos e estabelecer, ele próprio, uma indispensável condição de equilíbrio entre empreendimento e forças naturais.

Fornecer informações para que essas ações humanas levem corretamente em conta o fator geológico, garantindo então seu êxito técnico/econômico/social e evitando as graves conseqüências referidas, constitui o objetivo essencial da Geologia de Engenharia.

É indispensável, nesse contexto, que o Geólogo conheça exatamente quais os tipos mais comuns de solicitação que os diferentes empreendimentos (barragens, estradas, minerações, cidades, metrôs, aterros sanitários, agropecuária) impõem aos terrenos, o que lhe permitirá orientar e objetivar as investigações que se seguirão e a comunicação de seus resultados.

De outra parte, é fundamental para o sucesso das operações de engenharia que estas se apóiem em um perfeito casamento entre a solução adotada, as características geológicas dos terrenos e materiais afetados e os processos geológico-geotécnicos naturais ou eventualmente provocados pela implantação de um pretendido empreendimento. Daí a essencial importância da exatidão do diagnóstico fornecido pelo Geólogo de Engenharia, no âmbito do qual devem estar descritos todos os fenômenos que podem ser esperados da interação solicitações/meio físico geológico. Ou seja, a GE tem uma abordagem técnica essencialmente fenomenológica.

Por outro lado, a GE só conseguirá cumprir cabalmente essa responsabilidade, e assim ser útil à Engenharia e à sociedade em um sentido mais amplo, na medida em que não se descole de suas raízes disciplinares, de sua ciência-mãe, a Geologia, o que significa exercitar e priorizar seu principal instrumento de trabalho, o raciocínio geológico. Essa precaução a fará sempre ter como ponto de partida a consciência de que qualquer ação humana sobre o meio fisiográfico interfere, não só limitadamente, em matéria pura, mas significativamente, em matéria em movimento, ou seja, em processos geológicos, sejam eles menos ou mais perceptíveis, sejam eles mecânicos, físico-químicos ou de qualquer outra natureza, estejam eles temporariamente contidos ou em pleno desenvolvimento.

 

Sobre as relações da Geologia de Engenharia com a Engenharia Geotécnica

Compreende-se assim a extrema importância de geólogos e engenheiros (e arquitetos e urbanistas, especialmente nos casos de edificações e problemas urbanos) comungarem perfeito entendimento sobre a natureza e fundamentos de suas responsabilidades específicas no desenvolvimento de projetos de engenharia em sua prática profissional. Será sempre a mais exata compreensão dessas diferentes responsabilidades que permitirá o indispensável convívio harmonioso e complementar entre as duas categorias profissionais.

Em sã consciência não há hoje quem ponha em dúvida a fundamental importância dos projetos de engenharia, ou quaisquer outras intervenções humanas sobre o planeta, levarem em plena consideração as características geológicas dos terrenos por eles afetados.  Entretanto, são ainda comuns no ambiente geotécnico brasileiro dúvidas e desencontros muito grandes sobre como deve desenvolver-se na prática profissional real essa indispensável interação entre a Geologia e a Engenharia; em nosso caso, mais precisamente entre a Geologia de Engenharia e a Engenharia Geotécnica.

Em não raros casos essa dificuldade explica-se ainda em visões limitadas e preconceitos menores de parte a parte, mas não há dúvida que fundamentalmente é o desconhecimento teórico sobre como devem metodologicamente interagir essas duas geotecnologias aplicadas que se impõe como o principal fator limitante de um trabalho mais rico e resolutivo entre os profissionais envolvidos.

De início, importante firmar alguns conceitos de partida. O grande campo da Geotecnia é composto basicamente pela Engenharia Geotécnica (EG) e pela Geologia de Engenharia (GE). Partem, portanto, dessas duas geotecnologias os conhecimentos necessários a levar a bom termo qualquer empreendimento humano que interfere diretamente no meio físico geológico, ou que usa materiais geológicos naturais como elementos construtivos.

Importante nesse contexto interdisciplinar entender que ainda que em todas as fases de um empreendimento, do projeto à sua execução, deva existir sempre um sadio e eficiente espírito de equipe, uma ação continuadamente colaborativa e interdisciplinar entre as diversas modalidades profissionais atuantes, é fundamental que nunca se perca de vista a responsabilidade maior que uma modalidade deva exercer, e por ela responder, em cada atividade e em cada fase de trabalho.

Nas investigações geológico-geotécnicas que antecedem o Projeto e o Plano de Obra e se prolongam no período de obra e na própria operação do empreendimento, essa responsabilidade maior é da GE.

No entanto, é preciso que fique muito claro a todos que a missão da GE não se reduz a entregar à engenharia um arrazoado sobre a geologia local, a posição do NA, um punhado de perfis e seções geológicas e outro punhado de índices geotécnicos relativos aos diversos materiais presentes. Como já vimos, o trabalho da GE transcende essa limitada e apequenada visão meramente descritiva e parametrizadora, ainda infelizmente bastante comum entre geólogos executantes e engenheiros geotécnicos demandantes.

A abordagem da GE é essencialmente fenomenológica. Todos os dados e informações anteriormente mencionados são muito importantes, mas o produto final e essencial das investigações geológico-geotécnicas na fase anterior ao Projeto e ao Plano de Obra é um Quadro Fenomenológico onde todos esses parâmetros não estejam soltos ou isolados, mas sim associados e vinculados a esperados comportamentos do maciço e dos materiais afetados pelas futuras solicitações da obra. Ou seja, a missão maior da Geologia de Engenharia está em oferecer à Engenharia (lato sensu) um quadro completo dos fenômenos geológico-geotécnicos que podem ser esperados da interação entre as solicitações típicas do empreendimento que foi ou será implantado e as características geológicas (materiais e processos) dos terrenos por ele afetados. A esse quadro fenomenológico a GE junta suas sugestões de cuidados e providências que projeto e obra deverão adotar para ter esses fenômenos sob seu total controle.

Assim, todo o esforço investigativo da GE deve ser orientado, desde o primeiro momento, a propor, aferir, descartar e confirmar hipóteses fenomenológicas, de forma a, ao final, obter seu quadro fenomenológico.

A partir desse ponto a GE entrega o bastão de comando (e responsabilidade maior) para a Engenharia Geotécnica, passando a assumir, nesta nova fase, o papel de apoio e complementação. Lembrando que a frente de obra sempre constituirá um lócus privilegiado para a confrontação das hipóteses levantadas, para as investigações complementares que se mostrem necessárias e para o monitoramento dos parâmetros geológicos e geotécnicos envolvidos nos fenômenos identificados como possíveis.

Por seu lado, a Engenharia Geotécnica, entendida como a engenharia dedicada à resolução dos problemas associados às solicitações impostas pelos empreendimentos humanos ao meio físico geológico, tem como sua missão maior a definição final, em âmbito de Projeto e Plano de Obra, das soluções de engenharia e seus exatos dimensionamentos físicos e matemáticos, zelando, juntamente com a GE, pela plena compatibilidade e solidariedade entre as soluções adotadas e os fenômenos geológico-geotécnicos a que se relacionam.

Dentro desse entendimento, ainda que sempre no âmbito de um trabalho permanentemente solidário e colaborativo, será de total responsabilidade da Geologia de Engenharia qualquer problema que venha a acontecer e que decorra de fenômeno geológico-geotécnico que não tenha sido previsto, ou corretamente descrito, em seu Quadro Fenomenológico. Como será de total responsabilidade da Engenharia Geotécnica qualquer problema que ocorra pelo fato do projeto e/ou do plano de obra não ter levado em conta, e da maneira adequada, algum fenômeno potencial incluído no referido quadro.

 

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